Aqui se reproduz, com a devida vénia, a tradução de um artigo publicado no "Journal de Notre Dame" pelo senhor José da Silva, emigrante e exilado português
Eu gostava de ouvir as conversas dos adultos, em pequeno, e intrigou-me essa expressão: “pedreiro-livre”. Pronunciada com um desprezo algo temeroso, uma espécie de respeito malgré soi. A Maçonaria, que todos sabem vir de maçon, era o inimigo, eram as forças do mal, organizadas; mas, para além disso, ninguém me sabia ao certo explicar o que era, ocupados a benzer-se mentalmente ao ouvir tal palavra.
Hoje sei algo de Astrologia, deve andar pelos 40 anos que a estudo, mal ou bem, e sei que as nossas características psicológicas estão todas escritas, com uma precisão assombrosa, na nossa carta astral. Sei que a liberdade, por destino meu, me interessa mais que à maior parte das pessoas, sei que é meu destino sentir-me irmão daqueles que são desrespeitados e forçados a fazer o que não querem. Sei também que a mesma liberdade me impede de pertencer a qualquer organização, quiçá a qualquer grupo, estou sempre com cuidado para me não comprometer, destino meu. Não sou maçon.
Mas identifico-me com os pedreiros-livres da minha imaginação, vejo-me, no século XI, a desenhar na pedra uma curva para um arco da catedral, pago pelos burgueses, enquanto o bispo vem ver a obra e eu me interrogo se, de facto, precisamos dele para nos relacionarmos com o mistério. Por mim tenho a certeza de que não precisamos de matar os hereges, essa matança faz deles meus irmãos, faz do bispo meu inimigo. Nós, pedreiros-livres, somos aqueles que pensam pela própria cabeça, com o coração, claro, não é no coração que os chineses põem o pensamento?
A maior parte das pessoas, porém, não me parece fascinada pela Geometria, não sente o mesmo incómodo que nós ao ver alguém usar mal o compasso, não procurar a precisão nas palavras e nas ideias.
Os servos da gleba abrigam-se à sombra do castelo, desarmados procuram protecção. Fazem das ideias dos poderosos o seu senso comum, não pensam pela própria cabeça, porque isso é perigoso. Amocham. Pior: acreditam no senso comum, não geometrizam, são capazes de dizer, como o bispo, que lhes parece que aquele arco está mal, à vista, e são capazes de acreditar no que vêm sem usar o compasso. Mais que isso, são capazes de matar os que vêm doutra maneira, porque mediram. Claro, antes de matar ostracisam, humilham…, creio que procuram a segurança no senso comum, melhor, no que os poderosos pensam, no que os poderosos lhes dizem que lhes convém pensar.
Somos muito poucos, os pedreiros-livres. A maior parte dos burgueses continua na condição servil. O dinheiro libertou-os, formalmente, mas ficaram presos à servidão da corte. Imitam-lhes as maneiras, as roupas, o pensar. Não se sentem seguros fora desse macaquear dos poderosos. Acumulam dinheiro mas não se libertam da sua condição servil.
A geometria caminhou os séculos; da imprensa e do caminho-de-ferro às sondas Voyeger que saem, neste momento, do sistema solar; escreveu as leis: “Todos os homens nascem livres e iguais em direitos”. Porém os nossos irmãos procuram em toneladas de imprensa (livre!), como se veste a caricatura de corte que imitam, corteses! Continuam à procura da segurança na obediência e reprimem, ostracisam, quem pensar pela própria cabeça, quem puser em causa o seu mundo absurdo, insustentável no tempo, porque delapida os recursos do planeta com os seus falsos valores.
Quando construíamos as Catedrais fazíamo-lo na procura da Verdade, que sabíamos habitava no fundo da nossa alma e nos pedia que usássemos as nossas mãos e o nosso discernimento com liberdade. Chamávamos-lhe Jesus Cristo, Nosso Senhor, era em nome dele que defendíamos o direito dos irmãos à vida com sentido. Hoje sabemos que o mundo é vasto e que a Verdade tem inúmeros nomes mas somos todos um, o self continua no fundo da nossa alma, bem visível, se o não ocultarmos de nós mesmos.
Os que escondem a verdade de si mesmos, esses nos entristecem. Não foi a Igreja nem a Nobreza que derrotámos; foi quem as usou como capa para esconder a verdade e contra ela lutou. Há, ainda hoje, na Igreja e na Nobreza, quem não tema a verdade e a procure. Esses não precisam de nos humilhar, temerosos ao ver os seus dogmas de ocasião contestados, agarrando-se à forma e procurando aniquilar quem procura o conteúdo.
A espada, símbolo do poder, era um instrumento nas mãos do nobre para exercer a sua responsabilidade. Um meio, não um fim. Hoje, o dinheiro é o símbolo do poder; continua a ser um meio, não um fim. Nem a espada nem o dinheiro são responsáveis pelo bem ou pelo mal que com eles fizermos. Merecem respeito, são belos instrumentos, símbolos de uma época. Mas não lhes obedecemos, usamo-los!
Neste momento, nos países mais ricos da Europa, cresce o número de pessoas que apaga as luzes quando delas não precisa, que recusa os sacos de plástico, que procura os gestos para dizer que está com a Terra, que está com a frágil vida deste pontinho azul no espaço imenso.
Nós, os portugueses, deitamos lixo nas áreas ecologicamente protegidas e os responsáveis por as proteger fazem lixeiras burocraticamente inacessíveis com o fim de cobrar multas. Em vez de usarem o poder do dinheiro para exercer a sua responsabilidade de proteger essas áreas usam-nas para criar dinheiro. Põe a Terra ao serviço do instrumento, não a respeitam. O nosso é um país em que um presidente da Câmara conseguiu que uma área ecologicamente protegida passasse para a posse dela para fazer um parque desportivo e fez lá prédios e vendeu-os. E chegou a primeiro-ministro!
Milhares de pequeninas tiras de terreno, nos arredores de pequenas cidades europeias, são acarinhados, ao entardecer, por citadinos que comem os saborosos frutos da terra e se recusam a comer os desenxabidos das grandes superfícies. Nestes últimos anos este fenómeno de burgueses jardineiros cresceu exponencialmente.
Nós, os portugueses, plantamos prédios nos terrenos férteis. Não queremos saborear maçãs, queremos o sabor das notas de mil.